30 de abril de 2014

Desfoque

A loucura que nos separa é um desfoque inicial.

Esta barulheira merdosa e cinzentona das sirenes a rebate, que se enrola e rebola pelo chão à pancada com a fumarada e o lixo do populacho, é um mero cabo ferrugento e desbotado de uma ponte em queda livre.

Não aguento mais esta sociedade louca e franzina, de olhos esbugalhados e dopados, de boca espumarenta e insaciável sempre à espera do pior de mim. Mas não to vou dar, juro...não to vou dar!

É uma bacia cheia de merda o mundo em que vivemos.

Enoja-me esta Bíblia de costumes e cortesias conspurcada, oleosa e relaxada, que se arrasta e me enerva ao ponto de me fazer chorar cada dia da minha vida.

São as putas que fogem e os cabrões que matam, nada fica no seu lugar!

É tudo tão louco, tão doentio e tão febril que prefiro viver cego e sentado. E bastar-me-á apenas um banco numa praia e o barulho das ondas a espancar o areal. Bastar-me-á apenas o cheiro de uma gaivota e o toque do tempo a passar.

Ficarei ali para sempre, sozinho, comigo mesmo!

E se alguém chegar, pego nos pés e parto sem enxergar um palmo do caminho, porque a loucura que nos separa é um desfoque inicial.

28 de abril de 2014

Larga as palavras

Larga as palavras,
Diz-lhe que não podes mais deter o tempo.
Tudo mudou, tudo evoluiu, tudo está diferente.
É a lei da natureza conhecida pelo Homem,
O amadurecimento das coisas,
O passar do tempo em que me arrasto eu e tu.

Não me peças indiferença, mais distância e mais dias,
Não me peças para te dar mais do que já roubaste.
Não! Não vou levar-te comigo naquele arrastar de horas,
Naquele arrastar de momentos que desvanecem
Quando vamos de encontro ao nosso cosmos.

Quero revirar o tempo e alterar os meus erros,
Quero mudar o mundo e devolver-te o que foi teu,
Quero recuperar o que já perdido não pode voltar.
Não posso levar-te comigo sem estares comigo,
Não quero acompanhar-te sem a tua companhia,
Não vou preocupar-me em mudar o que é fixo,
Não mais. É exaustivo nadar contra a corrente!

25 de abril de 2014

40 cravos

Não vou dizer que qualquer português sabe o que foi ou como se passou o 25 de Abril de 1974. Infelizmente não seria verdade. Mas os que sabem, marcam as quatro décadas de democracia portuguesa como uma altura de comemoração, de recordação, de agradecimento e de ponderação sobre o estado da Nação. Comemoramos o fim de muitos e muitos anos de opressão política, cultural e social. Recordamos os cravos e as espingardas que nos permitem agradecer aos Capitães de Abril e ao MFA a bravura com que derrubaram o regime, deixando-nos liberdade para pensar para onde vamos.

É difícil de prever para onde vamos, será talvez um futuro semelhante aos restantes quase novecentos anos passados, algo sombrio, com uns raios de sol e sempre de punhos erguidos. Podemos é, com mais certeza, analisar como estamos agora, tendo em conta o que passámos. A verdade é que o Estado Novo deixou marcas profundas em todos nós, tanto que ainda há quem, através da nada inofensiva expressão "no tempo do Salazar não era assim", ainda não se tenha convencido da democracia e da liberdade em que agora vivem.

Em quarenta anos de democracia mudámos profundamente, muito para além das tão badalas liberdades, direitos e deveres. Houve uma profunda alteração social  que esta gente saudosista - acredito que sem consciência do que dizem - esquece. Veja-se, e só dou alguns exemplos, a maioria dos nossos bebés chega a ser criança, chega a ir para a escola calçada e dispensa encher a barriga de álcool e pão ao pequeno-almoço (aquele cenário das barrigas de fome de África era comum em Portugal); todos temos, independentemente do tempo de espera, acesso a um médico pago por um sistema nacional de saúde que nos aumentou a esperança média de vida. Podemos agora andar de mãos dadas na rua, segredar, conspirar, falar e berrar, dançar, cantar, rir e ter esperança de sair da classe social em que nascemos. Podemos ter a ideia de um futuro que muitos, muitos antes de nós, oprimidos pelo regime e pela guerra, não tiveram sequer coragem de sonhar. E apesar de tomarmos tudo isto como garantido, não o é. E digo-o porque, em tempos, não o tivemos. A democracia, com todos os seus defeitos e ingerências, é algo a valorizar, é o catalisador de uma sociedade mais igualitária, conseguida em si própria e capaz de pensar que rumo quer tomar.

Temos de ter a noção de que, por muito mal que achemos que estamos de espírito democrático, há que preservá-lo e engrandecê-lo, contornando as dificuldades e olhando para o futuro. Porque se não o fizermos o fim, e prova-o a história, é a perda da democracia.

Por isso, completados quarenta anos de democracia e liberdade, olhemos para trás, paremos, pensemos e decidamos que caminho queremos tomar para completarmos muitos mais quarenta anos, cheios de cravos e sem espingardas.

21 de abril de 2014

Sujidade - Parte I

Dominado por um sono indesejado, Rodrigo Amarante chega até mim como um conjunto de sons eróticos. A melodia estimula o meu cérebro. Há tanto para limpar! Há tanto tempo que há tanto para limpar. Quando reparei na sujeira que havia feito, decidi que a melhor solução seria sentar-me e relaxar durante algum tempo. Atirei-me para o sofá, tirei o leitor de CD da mala e mergulhei em Rodrigo Amarante. Fechei os olhos, não suportava olhar para o teto também imundo. Se soubesse, teria calçado sapatos de borracha. Teria vestido uma roupa mais descartável e não este par de calças novas. Mas que grandecíssima merda!

Tudo se tornou azucrinante. Rodrigo Amarante chega até mim como um fardo. Quero desligar, mas já sujei as minhas mãos e agora receio sujar o leitor de CD. Que alguma coisa saia limpa desta sala! Tiro os auriculares dos ouvidos, com cuidado, para não ver os fios brancos manchados de vermelho.

Ela encontra-se deitada no quarto. Deitou-se antes dele chegar, como se o que fosse acontecer a seguir nada tivesse a ver com ela. Oiço a sua respiração da sala. Está diferente. Normalmente, a sua respiração arrasta as ondas do mar e enche a casa com o som fresco. Está anelante, como se a culpa que penetra nos seus sonhos saísse pesadamente através da respiração.

Reencontrei-a numa tarde primaveril, há alguns meses atrás. O Parque da Cidade encontrava-se repleto de flores. Deitado na relva, este era um cenário divino de se ver. Mas a relva não se encontrava preparada para roupa primaveril, penetrava no tecido leve da camisa que tinha vestido e deixava-me no mais puro desconforto. Numa das várias tentativas de me pôr confortável, avistei-a. Passados quase dois mil anos, a sua alma continuava bela e leve. Aproximava-se de mim e transportava toda aquela aura marinha. Trazia um vestido negro de algodão cujas pontas esvoaçavam a cada movimento seu. Deitou-se ao meu lado. Não disse nada durante muito tempo. Uma joaninha pousou no seu peito, um ponto vermelho na imensidão do negro vestido. Quanto o Sol já se encontrava no meio do céu e o ar estava cada vez mais pesado, levantou-se, toda a sua figura tapou a luz e a sombra do seu corpo invadiu o meu. Nesse momento, agradou-me a ideia de ter parte da sua essência sobre mim. Disse-me, com a sua voz suave e doce, que tínhamos um assunto pendente a tratar.

Junto ao sofá, no chão, o metal frio do arco rouba-me o calor das mãos. Há alguns minutos atrás, quando toda a minha a mão envolvia parte do metal do arco, parecia que todo o arco tinha como missão sugar todo o calor do meu corpo. Ou talvez tenha sido uma ilusão por me ter concentrado inteiramente na tarefa de apontar ao alvo. Comprei apenas uma flecha, na condição de que se falhasse ele teria a sua liberdade de volta. Com apenas uma flecha, a tarefa teria de ser infalivelmente executada. Falhar significaria passar outros dois mil anos de angústias. Desta vez é mais fácil. Não vim de um ventre intacto, não tenho uma legião de almas sugadoras atrás de mim. Desta vez sou só eu e ela.

O cadáver está no canto da sala, ainda sentado na cadeira onde repousou para aceitar o seu destino. Julguei que não me reconheceria quando o trouxe dos mortos. Olhou-me nos olhos e reconheceu os olhos que outrora se dirigiram para ele com carinho. Tinha uma expressão melancólica, tinha o olhar carregado de tristeza. Todo aquele espetáculo de melancolia era contagiante. Repudiava-o ainda mais. Se há coisa que detesto são alminhas que pedem piedade com os olhos, não suporto olhos carregados de tristeza súbita. Disse-lhe que daí a quarenta dias iria atirar uma flecha no espaço entre as suas sobrancelhas. Se falhasse, estaria em liberdade e o nosso assunto pendente estaria para sempre resolvido.

16 de abril de 2014

Comboio

Duas e um quarto da manhã, saio de casa e bato a porta.

À minha frente passam comboios em ritmo frenético e direções contrárias, numa linha imaginária e estranhamente discreta.

Caminho pelo passeio e seguro o preto chapéu de coco quando a força do vento me estala a cara.
Um dos comboios parou. Parou precisamente onde em criança eu brincava aos berlindes. Um homem alto e misterioso saltou de um dos vagões e quando aterrou sobre a gravilha seca, uma garrafa de vinho quebrou-se aos seus pés. O homem cambaleou agarrado ao imaginário,  tropeçou, porque assim faz parte, e estatelou-se contra o aço do vagão.

Corri para o ajudar, ardia por dentro, um dia pode ser o meu pai, pensei. Quando cheguei junto do comboio, não encontrei nada. Que vazio o meu!

A poeira escura da noite pesava nos meus ombros, não via quase nada e uma melodia mecânica e estridente foi gradualmente crescendo. Começou a chover e os pingotos caíam a rasgo ao som do piano. Tantas teclas vi eu! Saltavam repetidamente quando o pianista dedilhava sem dó. Tocava com tanta raiva que me comovi.

Agora chovia água, lágrimas e marfim, os comboios passavam cada vez em maior número e cada vez mais rápido, a noite estava fria e o frio deixava-me confuso.  Havia cada vez mais barulho, um barulho movimentado e amargo, e eu comecei a correr. Sentia nas pernas o inverno de Vivaldi.

Ceguei e perdi-me por completo, um comboio levou-me à frente. De repente fez-se paz. Senti-me branco por dentro, vazio.

E o piano parou de tocar, a madeira desfez-se e o Homem saiu satisfeito.

14 de abril de 2014

Dar Amor

Quem dorme para a vida
Vive para a morte.
E quem sonha acordado,
Se morrer, tem pouca sorte.

Felizes aqueles que vivem
Para viver mais e mais.
E vivem dando espaço no seu cais
Para qualquer barco,
Naufragado ou não, que vem.

Infelizes aqueles que,
No meio de um arco-íris de neve estrelada
Se sentem sós e, a quem nós, os felizes,
Tentam levar de novo para a estrada.

Felizes aqueles que lêem e escrevem
E que dão a ler e a escrever
Aos infelizes que nada têm
ou não querem ter.

Se Deus existe,
Então escreve o seu amor nos arco-íris.
@@@

9 de abril de 2014

A ti, Coimbra

A ti, Coimbra, que me acolheste em teu encanto
Abençoo o dia que despertou em mim este espanto
Presenciaste os meus romances, contigo aprendi a amar
Chegar a ti mostrou-me que ainda é possível sonhar
Acompanha-me nesta idade de novas descobertas
Dá-me sabedoria para um dia tomar as decisões certas

Coimbra, quem te fez tão perfeita e tão cheia de vida?
Tudo em ti corrompe nossa força, na hora da despedida.
Só quem te vive pode conhecer a dor de te abandonar.
Como consegues ter tanto com que nos maravilhar?

Coimbra, temo o dia em que te deixarei

E, repara, que ainda só agora cheguei.

7 de abril de 2014

O Pasmado

A porta estava aberta. No meio da sala havia apenas uma velha mesa de carvalho e, em cima dela, o corpo mole e inerte de um homem morto.

O cinzento era a cor que predominava e não havia sangue, não agora. O corpo estava estranho, pálido e frio.

Arrastei uma cadeira desde o corredor até ao centro da sala e sentei-me bem perto do corpo. Não tenho vergonha, não tenho medo de gostar de estar perto de um morto! No entanto, não lhe toquei, talvez por respeito, talvez por não estar habituado à textura indiferente de um homem quieto.

Preguei os cotovelos ao tampo da mesa e apoiei a cabeça entre as mãos, inclinando-a ligeiramente para a direita, assim, olha, como quem pensa com muita força.

Apaixonou-me o modo selvagem com que os cabelos do pasmado se desorganizavam entre a farta cabeleira.

Morto, fala! Pedi eu baixinho.

Deslizei um dos cotovelos sem intenção, e no momento em que me perdi entre a queda e a reacção o meu braço empurrou-o. Morto, fala! Repeti eu, mas desta vez a medo.

Um barulhinho niquento foi crescendo por todo o corredor. CLAC, CLAC, CLAC, era o som autoritário de um elegante par de sapatos.

Uma mulher entrou de rompante, a porta não estava fechada, é bem verdade, no entanto ela entrou como quem fala de forma grosseira. Uma figurinha enfiada e intrometida, ligeiramente amarelada e sem qualquer graça.

Olhei para a porta, fitei-a. Ridícula a posição, uma mão enterrada na fina cintura e a outra cravada no topo da ombreira da porta, as pernas ligeiramente afastadas e uma expressão corporal na tentativa de conquista. Olá, disse eu, ela sorriu e o estranho amontoado de dentes convidou-me a sair, Seja bem-vindo, respondeu ela.

A existência de mais do que um tipo de abordagens revelou-se ao longo dos tempos num fa[c]tor essencial à compreensão, ou por outras palavras, decifração da complexidade humana. Ou seja, se o Homem não fala pede-se-lhe que escreva, se o Homem não escreve então pede-se-lhe que fale, pois o importante é arranjar dinheiro, de forma honesta, se possível, se assim não for, o importante é arranjar dinheiro, disse ela num tom frio, certeiro, rápido e mesquinho.

Não consegui reagir, eu nunca reagi bem à realidade. Contudo, ela não precisou que eu reagisse, pôs as mãos dentro das calças, precisamente onde não as devia ter, às mãos, pelo menos ali, naquele momento, e sacou de uma pistola pequena, brilhante e inesperada.

PUM, PUM, PUM, PUM, disparou gananciosamente sobre o morto. PUM, PUM, PUM, atirou-lhe tantos tiros quanto pôde. Agora há sangue, pensei para mim mesmo.

Se o Homem não fala nem escreve é apenas um tenro saco de tiros, escarrou ela secamente.

Agarrei-me à mão do pasmado com tanta força quanta tinha, queria muito conhecê-lo. Fitei-a, à mão, e de seguida cravei um grave soco na mesa de madeira. O barulho foi seco. Eu nunca te pedi que escrevesses, lamentei.

O chão estava alagado de sangue, morrera há pouco, concluí, e as paredes repletas de restos carnais, salpicos, manchas e marcas de carnificina. Era uma espécie de fusão do macabro com o acolhedor. Senti-me confortável, apenas triste pela segunda morte do pasmado.

Um chorrilho de baboseiras, pensei eu, a vida é assim.

4 de abril de 2014

To Kill a Mockingbird

Não é de mim dar a minha opinião acerca de filmes, livros e arte em geral. Acho que são coisas deveras pessoais e incapazes de se transpor de ideia para ideia. No entanto, hoje decido aventurar-me na revisão crítica por me sentir obrigado a isso.

Acabei de ler To Kill a Mockingbird, de Harper Lee. Já tinha ouvido falar muito do livro e como devia ser lido - agora concordo - mas não sabia (primeiro pela inconveniência do nome e depois propositadamente) que o autor era na verdade uma autora. Assim que me embrenhei nas primeiras palavras adquiri a convicção de que seria uma mulher. Digo isto porque nunca encontrei um homem capaz de expôr a inocência da alma de uma criança tão bem como Harper Lee o faz, capaz de, num estilo simples e viciante, transpor a realidade social dos estados do sul dos Estados Unidos da América. 

Jean Louise e o irmão mais velho, Jem, vão crescendo ao longo dos cerca de 4 anos em que Jean narra o que vê à sua volta. Atticus, o seu pai, com a ajuda de Calpurnia, a empregada/ama negra, faz o melhor que pode para mostrar aos filhos como é o mundo e como devem agir face a eles, incutindo-lhes valores morais algo peculiares na vida quotidiana de Maycomb County. E Scout (Jean Louise) parece apreender bem a lição, demonstrando-o quando toda a rua os olha de lado por o pai defender, em julgamento, um negro. Claro que alguns defendem a igualdade e justiça humana tanto como Atticus, e esses vão ajudando a educar as crianças, mas outros apenas servem para demonstrar a natureza cruel daquela gente. E é precisamente esta gente, postas sobre a lupa da esperteza inocente de Scout, procurando justificações na sua família, que torna a leitura do livro uma necessidade. O facto de ser uma criança, numa simplicidade extraordinária, a narrar a história, disfarça o degredo moral que se vive por aquelas terras do sul, beatas, morais e racistas; permitindo ao leitor que interiorize lentamente a mensagem de esperança, igualdade e justiça que tanto apreciamos.

O que me leva a admirar ainda mais o livro é ter sido escrito em 1960 e passar-se por volta de 1935. Quem percebe um pouco de história americana sabe que a década de 1960 foi um choque entre falsas moralidades, repleta de confrontos entre quem defendia a igualdade entre raças e quem não a queria - um assunto bem patente e sensível nestes estados do sul. E quem percebe um pouco de história americana e direito sabe que sempre foi assim. Apenas a raça branca tinha todos os direitos e privilégios políticos, as outras eram subjugadas a certas ordens e condições sociais diminuidoras. Foi-o assim em 1935 e continuou a ser em 1960. Daí o livro ter-se tornado de leitura obrigatória nas escolas americanas, por ser uma denúncia às maneiras cruéis dos homens, escondidas pela moral religiosa e social, servindo para desabar com os preconceitos existentes. Vemos na família Finch uma estranheza de valores morais, ainda para os dias de hoje - infelizmente -,  marcados por todo um sentimento de algo a que chamaríamos de bem genuíno, por ser "pecado matar uma cotovia. (...) As cotovias não fazem mais nada senão cantar para nós." - é errado afastar/destruir algo apenas por ser algo, sem não ter feito dano algum, tanto para as cotovias como para os homens. Não é a ingenuidade de uma criança como Jean, nem a incompreensão social da realidade que a rodeia que marca o sentimento geral deste livro, é mesmo a noção de valores que nos foram consagrados na Carta dos Direitos do Homem.

Concluindo, tenho pena de já ter acabado de ler o livro. Raramente compro livros - acho que os livros são fontes de divulgação, lê-se e passa-se a outro, apenas fica a história - mas "To Kill a Mockingbird" fez-me sentir a necessidade de o ter para mim, para nunca me esquecer do que li. Mais, vou arriscar e ver o filme Na Sombra e no Silêncio de Gregory Peck (1962), uma adaptação do livro.

Um grande bem haja, Harper Lee.

2 de abril de 2014

Introspeção ou a dualidade do tempo

As gotas deslizavam pela janela do pára-­brisas, como que a ver qual delas ganhava aquela corrida infrutífera e desprovida de qualquer prémio. Os limpa­ pára­-brisas trabalhavam sem cessar e, ainda assim, as gotas teimavam em escorrer vidro abaixo, como que a competir comigo. Nada verás para além de nós. Boa sorte a descalçar esta bota. 

À medida que avançava, perdia-­me. Deixei de ver a estrada de dois sentidos que estava à minha frente. Deixei de me preocupar com o facto de esta parecer estreita para dois carros ligeiros. Estreita demais. Deixei de ver as gotas que competiam entre si para saber qual delas chegava primeiro a um local que deveria estar predestinado e estabelecido entre si como meta. Fixei o olhar no relógio digital que marcava já as vinte e duas horas e trinta e quatro minutos e insistia em relembrar­-me constantemente de que estava atrasada para, também eu, naquele dia chuvoso e pouco apelativo, chegar à minha meta.

Dei por mim perdida, mas não no caminho que tomava. Perdida algures nas camadas intrínsecas das memórias. Perdida no tempo e na sua relatividade. Como é possível que a minha primeira memória date de quando tinha pouco mais de três anos e, no entanto, não me lembre de momentos mais tardios e que deveriam estar mais presentes nas minhas lembranças? Deveriam, sim, se todos os momentos valessem o mesmo, temporalmente falando, e se o tempo - assim como as memórias - fizesse uma viagem retilínea.

E fará? Será que sim, será que não?

Neste momento, a estrada que percorro é bastante ziguezagueante, cheia de curvas e contra­curvas, não sendo possível prever como será o troço seguinte. Um pouco como a minha perceção da passagem do tempo. Ora passa depressa, ora abranda, como se estivesse perante o sinal amarelo, prestes a cair para o vermelho. Os relógios parecem marcar os segundos de forma maquinal; contudo, o tempo parece ele próprio possuir reflexão sobre si mesmo. Parece perceber que às vezes tem de passar mais depressa, outras vezes mais devagar. Todavia, o timing não é o ideal, pois gosta de viajar dessincronizado. Gosta de quebrar regras, quanta audácia transporta!

Recuperada da minha introspeção, notei agora que tinha também a companhia de uma bela trovoada para não me sentir abandonada no meu trajeto. Pedimos que aqueles que vêm ao volante tenham especial atenção, pois a tempestade desta noite avizinha­-se feia. São esperadas fortes rajadas de vento que podem atingir os cento e vinte quilómetros por hora. Também a chuva e a trovoada estarão presentes nesta noite fria. Mas fiquem com a nossa rádio, que ficarão por certo em boa companhia. 

Merda! Agora teria de me despachar porque ainda estava longe do meu destino. Como sempre, tinha abrandado inconscientemente, pois o meu cérebro preza muito o invólucro que o sustém e faz os possíveis para o proteger quando está em piloto automático.

Olhei pelo retrovisor. Não vinha nenhum carro atrás. Cobardes, com medo de uma tempestadezinha. Estava, portanto, sozinha. Quer dizer, não tão sozinha assim. Inclinei ligeiramente o espelho para baixo e vi­-o. No banco traseiro, deitado, como se não houvesse mundo para além daquele profundo sono em que estava imerso, estava Huno, o meu fiel companheiro de quatro patas. Dormia e suspirava despreocupadamente, alheio ao temporal que persistia lá fora. Já dizia o outro, que a inconsciência nos causa alegria e pensar apenas nos conduz à dor. Será? O Huno parecia estar sempre a sorrir, ainda que a dormir, por isso deveria ser verdade. Nesse momento, o Huno acorda, levanta-se e põe a pata no meu banco como que a fazer notar a sua presença. Com a mão direita, afaguei-lhe o pescoço e recebi uma lambidela de agradecimento.

Acelerei na curva seguinte e senti o carro a fugir ligeiramente. Inspirei, fechei os olhos por um segundo, encadeada com as luzes de outro veículo que vinha no sentido contrário ao meu, e meti novamente prego a fundo, porque o tempo urge e não espera por ninguém.