16 de abril de 2014

Comboio

Duas e um quarto da manhã, saio de casa e bato a porta.

À minha frente passam comboios em ritmo frenético e direções contrárias, numa linha imaginária e estranhamente discreta.

Caminho pelo passeio e seguro o preto chapéu de coco quando a força do vento me estala a cara.
Um dos comboios parou. Parou precisamente onde em criança eu brincava aos berlindes. Um homem alto e misterioso saltou de um dos vagões e quando aterrou sobre a gravilha seca, uma garrafa de vinho quebrou-se aos seus pés. O homem cambaleou agarrado ao imaginário,  tropeçou, porque assim faz parte, e estatelou-se contra o aço do vagão.

Corri para o ajudar, ardia por dentro, um dia pode ser o meu pai, pensei. Quando cheguei junto do comboio, não encontrei nada. Que vazio o meu!

A poeira escura da noite pesava nos meus ombros, não via quase nada e uma melodia mecânica e estridente foi gradualmente crescendo. Começou a chover e os pingotos caíam a rasgo ao som do piano. Tantas teclas vi eu! Saltavam repetidamente quando o pianista dedilhava sem dó. Tocava com tanta raiva que me comovi.

Agora chovia água, lágrimas e marfim, os comboios passavam cada vez em maior número e cada vez mais rápido, a noite estava fria e o frio deixava-me confuso.  Havia cada vez mais barulho, um barulho movimentado e amargo, e eu comecei a correr. Sentia nas pernas o inverno de Vivaldi.

Ceguei e perdi-me por completo, um comboio levou-me à frente. De repente fez-se paz. Senti-me branco por dentro, vazio.

E o piano parou de tocar, a madeira desfez-se e o Homem saiu satisfeito.

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