21 de abril de 2014

Sujidade - Parte I

Dominado por um sono indesejado, Rodrigo Amarante chega até mim como um conjunto de sons eróticos. A melodia estimula o meu cérebro. Há tanto para limpar! Há tanto tempo que há tanto para limpar. Quando reparei na sujeira que havia feito, decidi que a melhor solução seria sentar-me e relaxar durante algum tempo. Atirei-me para o sofá, tirei o leitor de CD da mala e mergulhei em Rodrigo Amarante. Fechei os olhos, não suportava olhar para o teto também imundo. Se soubesse, teria calçado sapatos de borracha. Teria vestido uma roupa mais descartável e não este par de calças novas. Mas que grandecíssima merda!

Tudo se tornou azucrinante. Rodrigo Amarante chega até mim como um fardo. Quero desligar, mas já sujei as minhas mãos e agora receio sujar o leitor de CD. Que alguma coisa saia limpa desta sala! Tiro os auriculares dos ouvidos, com cuidado, para não ver os fios brancos manchados de vermelho.

Ela encontra-se deitada no quarto. Deitou-se antes dele chegar, como se o que fosse acontecer a seguir nada tivesse a ver com ela. Oiço a sua respiração da sala. Está diferente. Normalmente, a sua respiração arrasta as ondas do mar e enche a casa com o som fresco. Está anelante, como se a culpa que penetra nos seus sonhos saísse pesadamente através da respiração.

Reencontrei-a numa tarde primaveril, há alguns meses atrás. O Parque da Cidade encontrava-se repleto de flores. Deitado na relva, este era um cenário divino de se ver. Mas a relva não se encontrava preparada para roupa primaveril, penetrava no tecido leve da camisa que tinha vestido e deixava-me no mais puro desconforto. Numa das várias tentativas de me pôr confortável, avistei-a. Passados quase dois mil anos, a sua alma continuava bela e leve. Aproximava-se de mim e transportava toda aquela aura marinha. Trazia um vestido negro de algodão cujas pontas esvoaçavam a cada movimento seu. Deitou-se ao meu lado. Não disse nada durante muito tempo. Uma joaninha pousou no seu peito, um ponto vermelho na imensidão do negro vestido. Quanto o Sol já se encontrava no meio do céu e o ar estava cada vez mais pesado, levantou-se, toda a sua figura tapou a luz e a sombra do seu corpo invadiu o meu. Nesse momento, agradou-me a ideia de ter parte da sua essência sobre mim. Disse-me, com a sua voz suave e doce, que tínhamos um assunto pendente a tratar.

Junto ao sofá, no chão, o metal frio do arco rouba-me o calor das mãos. Há alguns minutos atrás, quando toda a minha a mão envolvia parte do metal do arco, parecia que todo o arco tinha como missão sugar todo o calor do meu corpo. Ou talvez tenha sido uma ilusão por me ter concentrado inteiramente na tarefa de apontar ao alvo. Comprei apenas uma flecha, na condição de que se falhasse ele teria a sua liberdade de volta. Com apenas uma flecha, a tarefa teria de ser infalivelmente executada. Falhar significaria passar outros dois mil anos de angústias. Desta vez é mais fácil. Não vim de um ventre intacto, não tenho uma legião de almas sugadoras atrás de mim. Desta vez sou só eu e ela.

O cadáver está no canto da sala, ainda sentado na cadeira onde repousou para aceitar o seu destino. Julguei que não me reconheceria quando o trouxe dos mortos. Olhou-me nos olhos e reconheceu os olhos que outrora se dirigiram para ele com carinho. Tinha uma expressão melancólica, tinha o olhar carregado de tristeza. Todo aquele espetáculo de melancolia era contagiante. Repudiava-o ainda mais. Se há coisa que detesto são alminhas que pedem piedade com os olhos, não suporto olhos carregados de tristeza súbita. Disse-lhe que daí a quarenta dias iria atirar uma flecha no espaço entre as suas sobrancelhas. Se falhasse, estaria em liberdade e o nosso assunto pendente estaria para sempre resolvido.

Sem comentários: