26 de maio de 2014

O Pastor

Tinha chegado a primavera. As flores espreitavam por todo o lado. As árvores exibiam o seu mais recente vestuário. Os animais acordavam da hibernação e começavam a busca por um parceiro sexual. Manuel adorava dias assim. Gostava de ouvir os rouxinóis, de caçar rãs, de observar os veados, de apanhar peixes... Tinha chegado a primavera e, como de costume, trouxera consigo vida.

Manuel vasculhou os campos em seu redor. Lá estava o seu rebanho junto à ribeira, lá estavam as suas ovelhas demasiado preocupadas em matar a sede para se darem conta de todo o esplendor que as rodeava. Biscaia corria por entre o feno como um louco,  até ver um grupo de pássaros no meio da plantação. Eram perdizes que desataram a voar, assustadas pelo desastrado do cão. Biscaia correu atrás delas até não as ver mais. Depois atirou-se para o rio e começou a nadar. Manuel morria de vontade de se juntar ao seu companheiro, mas a água estava ainda muito fria e deixá-lo-ia doente.

As ovelhas estavam agora deitadas junto ao muro de pedra, ao lado do rio. Biscaia tinha acabado de sacudir as gotas de água presas ao pelo. Enquanto se aproximava por entre as ovelhas, Manuel analisava cada movimento e cada característica sua. Era um belo espécime de cão de gado transmontano. Não admirava que tivesse derrotado três lobos que tinham tentado atacar o rebanho, durante o inverno. Contudo, a idade não perdoa e os pelos castanhos por cima do focinho já estavam a perder a cor. Manuel tremeu só de pensar que podia perder o seu amigo.

Como se pressentisse a preocupação do dono, Biscaia sentou-se ao seu lado, pousou a cabeça no colo e olhou-o. Aqueles grandes olhos escuros escondiam uma meiguice que só Manuel conhecia. Por instantes, Manuel desejou permanecer assim para sempre. Sentia um conforto interior por poder partilhar aqueles dias com o seu amigo. Era uma sensação de calor no peito, uma sensação de bem-estar. O simples prazer da companhia de um bicho num final de tarde primaveril. O sol insistia em esconder-se atrás das montanhas deixando o céu em chamas.

21 de maio de 2014

Fechar os olhos

Fechar os olhos foi o primeiro passo,
Para esquecer a artista que observava.
Ao mesmo tempo fechar os olhos
Foi o início do retrato a que servi de modelo.

Este simples gesto levou-me a
Passear  com o irlandês moderno
Por um local, onde só existe
o cantar da cascata e o ruído
da nossa respiração. E o mundo?

O mundo, esse, deixou de existir,
As pessoas tornaram-se pó.
E tudo isto aconteceu quando
Recordei que para me acalmar
Só basta fechar os olhos,
Respeitar o silêncio que
Oferece sabedoria e paz.

16 de maio de 2014

Bandido

Acorda todos os dias com a Nona. Permanece deitado na cama e tira da mesa de cabeceira um dos jornais no amontoado que lá tem. Lê uma data de páginas e volta a pousá-lo em cima do monte. Olha fixamente para o teto, enquanto ganha coragem para remover as mantas e lançar-se ao ambiente frio do quarto. Quando se cansa do coro, a força fingida da mente retira-o das mantas. Calça as pantufas brancas. Sai do quarto para o quarto de banho, onde escova os dentes minuciosamente, para depois contemplar a sua brancura.

Em cima da mesa da cozinha tem outro monte de jornais. Dirigi-se para lá, tira o café do armário e põe-no no filtro. Muito café e pouca água. Deseja-o amargo, porque café só é café se for amargo. Come sempre duas torradas, barradas com doce de morango, para acompanhar o café. Senta-se à mesa e degusta a refeição. Olha a montanha de jornais, que apelidou de Bandido, de relance. O Bandido do quarto é um acumular de notícias da atualidade. O Bandido da sala é um acumular de tudo que difere de notícia. Guarda jornais nos Bandidos para um dia mais tarde os ler. Os da atualidade não interessam em que altura são lidos. O tempo, na sua mente, não é linear. Como um relógio, volta várias vezes à mesma coordenada. As notícias de ontem podem, então, ser as notícias de hoje.

Hoje é sábado. Não tem de ir ao escritório, mas acorda mais cedo. Acaba de ler uma crónica de um jornal do Bandido da sala quando o relógio começa a gritar sons agudos. Está na hora de sair. Calça as botas e veste um casaco. Pega na caixa com o maço de cigarros e nas chaves, põe-nos no bolso. Sai para a rua com a roupa de dormir. «Não interessa, o Sol ainda não acordou!». Ao fechar a porta do prédio é confrontado com uma chuva que não é chuva, mas sim gelo, e gelo que não é neve. Chove ferozmente. Se voltar para trás agora, é pouco provável que tenha os jornais do dia de hoje. «Que se lixe!». Desce a rua. A rua onde mora é bastante inclinada. Se alguma vez tiver de fugir, a sua fisionomia atraiçoá-lo-ia, a gordura que tem na barriga é provável que também a tenha nas veias. Continua a descer. Para e encosta-se a um poste perto da papelaria da sua rua. Fumaria quantos cigarros fossem necessários até chegar a carrinha que entrega os jornais, mas está a chover. Nem a chama nem o cigarro acenderiam.

Uma carrinha vermelha aproxima-se, para em frente à papelaria. Dela sai um homem. Emília, a rapariguinha que trabalha na papelaria, abre a porta, o homem aproxima-se da porta e Emília inicia uma conversa inaudível com o homem. Aproxima-se da parte traseira carrinha, tira um dos conjuntos de jornais e põe debaixo do casaco. Olha para Emília. Ela corresponde ao olhar, como se fosse cúmplice platónica dele. Atravessa para o outro lado da rua, onde está o poste. Sobe a rua. A chuva cai, mas já não é gelo, nem gelo que não é neve, é água, apenas. Enquanto sobe, sente no cansaço a gordura das veias «Eu deveria fazer algum desporto.». Chega finalmente ao seu prédio. Subiria as escadas, mas os sábados de manhã são para o elevador. Em casa, põe os jornais em cima dos Bandidos, tira um jornal de edições passadas do Bandido da sala para ler na banheira, enquanto ouve a missa de Beethoven, para que no dia do juízo final o Senhor se lembre que os pecados eram seguidos por composições divinas.

14 de maio de 2014

Sol

Saí à rua e deparei-me com um belo sol,
Daqueles que nos dá um calor confortável,
Sem termos necessidade de tirar a roupa.
Aquele sol ideal para ir para o jardim ler,
Ou para fazer uma boa caminhada.

Saí à rua, vi o sol e lembrei-me de ti.
Revi os fotões reflectidos pelo teu cabelo,
Quando num dia como este fugíamos
Em direcção ao nada que para nós era tudo.
Lembrei-me de ti e senti um arrepio.

Saí à rua, lembrei-me de ti e o sol ocultou-se.
O calor confortável deixou-me. O vento veio.
Trouxe frio. Daquele que se entranha na pele.
Daquele que assusta pessoas e tira vidas.
Pareceu-me sentir o teu toque.

Saí à rua, o sol escondeu-se e arrepiei-me.
Vi-te pôr o teu casaco sobre os meus ombros,
Mas tu não estavas lá. Foi só uma visão...
Recordações como esta são veneno.
Fazem os mais lúcidos perder a cabeça.

9 de maio de 2014

Por favor, não me deixes parar de respirar

Está uma noite fria.

A varanda mais parecia um festival de tecidos, com todas aquelas roupas a esvoaçar por cima de mim, despenteando-me o cabelo que tinha sido criteriosamente lavado e esticado, há pouco mais de um par de horas.

Agora já não. Livrei-me de todas as vestes que ondeavam ao sabor do vento e permanecia agora sozinha naqueles dez metros quadrados rodeados por grades, por todos os lados exceto um. Grades que me dão um pouco abaixo da anca. Perfeitas para assentar os cotovelos e contemplar a fileira de edifícios tristes que estavam na rua à minha frente. Perfeitas para pincelar de cores alegres para contrastar. Perfeitas para trespassar de um só salto…

Mas não hoje, não nesta noite fria. Está demasiado agreste para pensar sequer em afastar-me do abrigo a que chamo casa. Só o facto de permanecer em pé numa varanda de um décimo primeiro andar já é um feito de notar. 

Sento-me no pequeno banco feito de madeira envernizada, o único mobiliário que resta aqui. Retirei os jarros de flores exuberantes, as decorações de parede a imitar animais felizes esvoaçando na primavera e até mesmo a pequena mesinha que servia de apoio para os meus livros.

Lá dentro reina o silêncio. Não se ouve vivalma. Partiu. Não deixou qualquer rasto para trás, empacotou artefactos dentro de caixas e roupa dentro de malas, provavelmente temendo uma perseguição da minha parte. Não tentaria, mas também não me importo que tudo se cinja, por fim, a um silêncio avassalador, insignificante.

Agora nada disso importa, porque algures no mundo há um teto a desabar com toda esta tempestade. Há alguém que, por muito longe que esteja desta tempestade, está a segurar a mão de outro alguém, assistindo ao seu último suspiro. “Por favor, não me deixes parar de respirar”. Pff, pedidos vãos e inexequíveis, facilmente levados e arrastados pelo vento.

O vento, esse que ainda não se rendeu e convidou a sua aliada chuva para vir brincar à apanhada. Competindo para ver quem corre mais. Do meu ponto de vista, um empate é algo plausível: as minhas roupas estão tanto molhadas quanto frias.

A fechadura da porta é rodada e faz o ruído característico de algo antigo e que precisa de ser oleado. Talvez seja este o sinal para voltar para dentro. Talvez tenha voltado em busca de um teto e de alguém para conversar. Ou talvez seja a minha mente, que continua a divagar, muito para além da realidade. Que esteja a criar matéria onde apenas há vazio. Não sei até que ponto confio no meu discernimento. Sei que temo o dia em que, eventualmente, deixe de sentir e de pensar; receio o dia em que tome consciência de que toda a minha vida não passa de um desígnio da minha imaginação e que, afinal, estou presa numa cama de um hospício, considerada louca porque vivo numa realidade paralela e inexistente.

Abro a janela e preparo-me para entrar em casa, refugiar-me do mau tempo, ir ao seu encontro e pedir-lhe ansiosamente que desta vez me agarre a mão e que, por favor, não me deixe parar de respirar.

5 de maio de 2014

Vergonha

Os sonhos, de manhã, são cantos de sereias. Iludem-me, seduzem-me para a sua direção e incitam-me a renegar a realidade. Mas não são sereias dos mares, são sereias num quarto escuro separado da claridade da realidade por uma porta azul. Chamam-me para o desconhecido, chamam-me para o atraso aos meus compromissos. Chamam-me para mais horas de sono e sonhos. As sereias são então partes do meu corpo, do meu corpo cansado. O meu corpo cansado que anseia por algum tempo de repouso. Mas esse mesmo corpo atraiçoa-me quando me rendo aos cânticos.

Sinto um fino fio de fluído a percorrer entre a pele das minhas pernas. Lentamente, os movimentos dos meus músculos vão se pronunciando, mostrando-se indiscretos e descoordenados. Ora dói-me o útero, ora doem-me os músculos da vagina. É um conjunto de movimentos primitivos e incertos.

Se esta fosse uma manhã da minha adolescência, levantar-me-ia o mais depressa possível da cama, para colocar, entre as minhas pernas, aquilo que é um dos vários atentados do Homem para esconder a sua vergonha. Colocaria um penso higiénico para me diferenciar das outras fêmeas do reino animal. Para lhes mostrar que a diferença entre o animal racional e o animal irracional reside apenas no facto de o racional saber esconder muito bem aquilo que o aproxima dos irracionais. Dizem-me que o que nos difere deles reside na nossa superioridade como a espécie escolhida pelo criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, que há já muitos milénios promete descer à Terra e fazer justiça para todos os homens bons, embora eu só o tenha visto nas maçãs divinas que como com regularidade preocupante. Mas aí, tanto a aparição como a justiça terrena são feitas só para mim. Pergunto-me se não serei eu a eleita. Pergunto-me se todas aquelas maçãs Fuji não são o alimento feito pelo Senhor, especialmente para mim, a eleita.

As gotas de sangue menstrual continuam a percorrerem a minha vagina. Continuo deitada, com uma almofada debaixo das minhas ancas, porque é sábado e interessa-me mais o conforto de uma cama que a vergonha transmitida por ancestrais.