7 de abril de 2014

O Pasmado

A porta estava aberta. No meio da sala havia apenas uma velha mesa de carvalho e, em cima dela, o corpo mole e inerte de um homem morto.

O cinzento era a cor que predominava e não havia sangue, não agora. O corpo estava estranho, pálido e frio.

Arrastei uma cadeira desde o corredor até ao centro da sala e sentei-me bem perto do corpo. Não tenho vergonha, não tenho medo de gostar de estar perto de um morto! No entanto, não lhe toquei, talvez por respeito, talvez por não estar habituado à textura indiferente de um homem quieto.

Preguei os cotovelos ao tampo da mesa e apoiei a cabeça entre as mãos, inclinando-a ligeiramente para a direita, assim, olha, como quem pensa com muita força.

Apaixonou-me o modo selvagem com que os cabelos do pasmado se desorganizavam entre a farta cabeleira.

Morto, fala! Pedi eu baixinho.

Deslizei um dos cotovelos sem intenção, e no momento em que me perdi entre a queda e a reacção o meu braço empurrou-o. Morto, fala! Repeti eu, mas desta vez a medo.

Um barulhinho niquento foi crescendo por todo o corredor. CLAC, CLAC, CLAC, era o som autoritário de um elegante par de sapatos.

Uma mulher entrou de rompante, a porta não estava fechada, é bem verdade, no entanto ela entrou como quem fala de forma grosseira. Uma figurinha enfiada e intrometida, ligeiramente amarelada e sem qualquer graça.

Olhei para a porta, fitei-a. Ridícula a posição, uma mão enterrada na fina cintura e a outra cravada no topo da ombreira da porta, as pernas ligeiramente afastadas e uma expressão corporal na tentativa de conquista. Olá, disse eu, ela sorriu e o estranho amontoado de dentes convidou-me a sair, Seja bem-vindo, respondeu ela.

A existência de mais do que um tipo de abordagens revelou-se ao longo dos tempos num fa[c]tor essencial à compreensão, ou por outras palavras, decifração da complexidade humana. Ou seja, se o Homem não fala pede-se-lhe que escreva, se o Homem não escreve então pede-se-lhe que fale, pois o importante é arranjar dinheiro, de forma honesta, se possível, se assim não for, o importante é arranjar dinheiro, disse ela num tom frio, certeiro, rápido e mesquinho.

Não consegui reagir, eu nunca reagi bem à realidade. Contudo, ela não precisou que eu reagisse, pôs as mãos dentro das calças, precisamente onde não as devia ter, às mãos, pelo menos ali, naquele momento, e sacou de uma pistola pequena, brilhante e inesperada.

PUM, PUM, PUM, PUM, disparou gananciosamente sobre o morto. PUM, PUM, PUM, atirou-lhe tantos tiros quanto pôde. Agora há sangue, pensei para mim mesmo.

Se o Homem não fala nem escreve é apenas um tenro saco de tiros, escarrou ela secamente.

Agarrei-me à mão do pasmado com tanta força quanta tinha, queria muito conhecê-lo. Fitei-a, à mão, e de seguida cravei um grave soco na mesa de madeira. O barulho foi seco. Eu nunca te pedi que escrevesses, lamentei.

O chão estava alagado de sangue, morrera há pouco, concluí, e as paredes repletas de restos carnais, salpicos, manchas e marcas de carnificina. Era uma espécie de fusão do macabro com o acolhedor. Senti-me confortável, apenas triste pela segunda morte do pasmado.

Um chorrilho de baboseiras, pensei eu, a vida é assim.

Sem comentários: