31 de março de 2014

Isto...

Que é isto que me impregna a alma,
Que feitiço teu fez em mim este encanto,
Que loucura a minha em pensar-te diferente.
Levar-te até à lua e deixar-te a sonhar…

Nunca meu ser deixei voar tanto,
Pois nunca encontrei o perfume certo
No qual pudesse inspirar meus sonhos.
Nunca meu afecto pareceu tão correcto
E mesmo assim achei-o tão errado.

Teu doce e viril aroma impregna meu espírito,
Enquanto me dou conta que é hora de partir.

28 de março de 2014

Esqueleto com cigarro aceso

Ele come gelados no inverno porque a vida é demasiado curta para moldarmos os nossos gostos segundo os gostos do planeta.

- Quero ver o mundo a arder!

Diz isso enquanto esbate sobre a tela camadas grossas de tinta castanha.

- O que pintas?

- Um esqueleto.

- Com esse pincel? Não seria melhor um mais fino?

- Não sou Caravaggio!

Sentado numa cadeira de madeira, de frente para a janela, para vislumbrar o negro da noite, pincela ferozmente. Pincela na tela e na roupa, na roupa que outrora fora imaculadamente branca. Usa sempre roupas brancas, de linho, para pintar.

- Pinto de branco, em noites negras, para misturar o luto humano com o luto do céu.

- Mas o branco não é a cor do luto.

- E quem o diz? Os padres reprimidos e as noivas virgens?

Tem um gira-discos Dallas Classic, especialmente comprado para o único disco de vinil que tem. Está no chão, entre a secretária e o quadro de uma mulher de vestido vermelho esfarrapado que passeia descalça pelas ruas de Paris. Toca Gato Barbieri, sempre Gato Barbieri. Toca desde o primeiro dia em que entrei neste quarto. Toca até o som penetrar no cérebro e criar pedaços finos de vidro que vão cortando o tecido e provocando dores de cabeça tortuosas. Ele parece ser imune a toda esta tortura.

Levanto-me da cama e caminho a seu encontro.

- O que pintas?

- Um cigarro.

- No esqueleto?

- Sim.

- Faltam-lhe pulmões. Como é que fuma sem pulmões?

- Como é que uma sombra fala nos livros de Murakami e tu não te interrogas?

- Mas isso é literatura.

- E isto é pintura!

As paredes negras do quarto contrastam com os quadros luminosos. Todos os quadros que pintou até então estão preenchidos por uma palete de cores leves. Todos, excepto este que ele está a pintar agora. Talvez o fundo negro sirva para contrastar com o esqueleto.

- Não achas que o cigarro merecia uma chama mais acentuada? E essas costelas não estão um pouco irreais, assim afastadas do resto?

- Talvez.

Pinta a chama quase impercetível do cigarro. Pousa os pincéis. Levanta-se, despe a camisa, dobra-a cuidadosamente e coloca-a em cima da cama. Desaperta o cinto das calças de linho, tira-as, dobra-as e coloca-as em cima da camisa. Dirige-se para a janela, senta-se no parapeito. Com o negro do céu, o verde que colora os seus olhos acentua-se.

- O que queres fazer?

- Quero ver o mundo a arder.

Atira-se para fora da janela. Corro para a janela, vejo-o cair e grito:

- Olha que desta vez não será só a orelha, magoarás o corpo todo!

26 de março de 2014

24 de março de 2014

Ela continua lá...

Eu limito-me a escrever sobre as coisas. Procuro alguma forma de me abstrair desta maldita sociedade que todos os dias me consome e rouba tudo aquilo que possa ser considerado humano, convertendo-me num autómato; numa máquina; em algo desprovido de sentimentos e emoções. O cancro da sociedade humana.

Mas ela continua lá…

É cansativo, no mínimo. Quando se tenta empenhar o nosso esforço sobre a oficina universal e sentimos o peso do nosso passado e de outros pensamentos. Haha! O trabalho fica comprometido. Rio-me pela insignificância do que acabo de me aperceber. Uma resistência inútil. Uma tentativa fugaz de alcançar aquilo que denominamos “civil” ou “humano”. É triste, no fundo. Como tal, levanto-me da secretária e tomo para outros lados.

Mas ela continua lá…

Preparo o meu jantar e tento alimentar a básica necessidade humana de “comer”. Pena que a mente se desvie para outros lados. Um “comer” diferente seria mais apropriado… Desde… Desde…

Não, não irei pensar nisso. Será decerto a minha ruína, como a de muitos outros antes de mim. Quando se lembram do calor, da sensação inigualável do toque de carmesim e da respiração ofegante. Da prenda divina a que todos os seres vivos tiveram acesso. Do trocar de almas e da mistura de  sonhos, pesadelos e compreensão da nossa barbárie. Uma selvageria prima de tempos outros. Tempos infinitos desde o processo da criação. Que foi? Acham-me louco por desejar assim tanto isso? Será que as pessoas se esqueceram do básico que as coisas são? Será que…

- Ainda aqui…

Não! Deixa-me! Eu não sou isso. Recuso-me a ser escravo desse pequeno sonho, inegável desejo.
Retiro-me frustrado da cozinha. Talvez música? Sim, música. Acalma-me. Chopin? Ou estarei mais para Bach hoje? Talvez Debussy.

Dirijo-me para o piano e toco. Toco… Viajo por entre o marfim e o ébano. Na procura de uma qualquer estrada musical, para além da escuridão do que me persegue. As notas passam por mim, acompanhadas por um mundo neutro e infinito. Um mundo que não é necessariamente a cores, mas também não se encontra desprovido delas. Vejo infâncias…

Observo passados e aberturas que dão entrada para tantas possibilidades…

É tão giro como a primeira música é sempre uma das mais especiais. Arabesque nº1.

- Lamento, mas contínuo cá. Ainda a tentar resistir-me?

Silêncio! Ahhhh! Como eu desprezo a obsessão que me fazes sentir. A forma como eu poderia pôr um fim a tudo…

Bato no piano, formando um acorde desconhecido pela mente de uma qualquer pessoa sã. O acorde é gritante. A mão procura… Procura algo… A mente ajuda…

- Porque te negas?

Não… Eu não posso. Será nojento. Apenas me vai amarrar mais.

- Shiu… Relaxa!

Ordem suprema do abrir da fenda cerebral! Toda a razão perdida. Apenas instinto. Instinto básico. Procura de sensações. Procura do gosto e de memórias. Memórias ativam.

O suor… O odor. Aquele regresso ao mais puro dos edens que nos foram concedidos. Sim! É isso. O maravilhoso toque que apenas… apenas…

- Eu posso permitir…

Sim! Tu!

- Rejeitas?

Não! Nunca! Não posso. Preciso de mais e mais e mais… Uma e outra vez. As energias não se esgotam. Rejeitar? Nunca!

- Então… Submete-te!

Agora e para todo o sempre! Liberta-me! Liberta-me!

LIBERTA-ME!



Silêncio…

O instinto vai-se…

A culpa assume forma. Uma forma não muito agradável. Rapidamente desaparece. Assim como a estranheza aceitadora.

A vida continua. Será apenas mais um. Um de muitos…

Tenho de trabalhar…

Sim, trabalhar.



Mas ela continua lá…

19 de março de 2014

Espaços de uma folha

Não é que eu queira ser,
De alma e coração, poeta
Colar nesta folha palavras de amor,
Imensos sentimentos…
Saídos da ponta de uma caneta.
Não é que eu queira gravar numa folha
Tantas palavras que te tenho a dizer
Mas é defeito meu. Elas do papel não saem.

Não é que queira, talvez,
esconder o que sinto neste pedaço de folha
e deixar-te de parte de tudo
o que na realidade te integra.

Não é que eu queira, nunca,
Em momento algum
Acreditar que o que sinto
Nesta folha caberia

O que realmente quero
É deixar gravado na folha do universo
O que do fundo do meu coração sai…
Essa folha sim contém o espaço necessário

Jéssica Fonseca

17 de março de 2014

Gostar ou não gostar, eis a questão

A poucos passos  de entrar na idade adulta apercebemo-nos que não nos contaram toda a verdade sobre a vida. Isto porque ao escolhermos os caminhos que queremos trilhar não conseguimos, cada um de nós, lidar harmoniosamente com todos as pessoas que vamos encontrando.

Penso que podemos atribuir a culpa a todas as pessoas que já tinham conhecimento deste facto e por alguma razão não o partilharam com os que há tão pouco tempo o constataram. Aproveitando a culpabilização, também é verdade que não nos disseram as inúmeras dificuldades que poderíamos experienciar, sendo que as mesmas poderiam conter um q.b. de felicidade marinada com alguma tristeza. Ao mesmo tempo, ninguém disse que seria fácil o percurso até a uma vida cheia de competitividade, composta por diferenças na forma de ser, estar e pensar de cada um.

Um dia em conversa com alguém que muito entende destas matérias, a mesma destacou o respeito. Este chavão que é usado por tudo e por nada, mas que na prática acaba por ser posto de lado, acrescentando “O respeito acaba por ser uma arma poderosa quando estamos perante o Outro, porque independentemente da forma como as pessoas me vêem e eu as vejo, tenho sempre presente o pensamento de que as pessoas fazem parte da minha vida em sociedade e jamais posso esquecê-lo no trato com os outros.” Talvez após ouvir uma reflexão com um caráter tão sábio, profundo, mas ao mesmo tempo simples, pense na sua aplicabilidade.

Quanto a cada um de nós fica ao nosso critério a sua aplicação ou não, bem como o grau de facilidade.

14 de março de 2014

Ponte Salazar



O 25 de Abril trouxe-nos liberdade.
E tu, ó ponte, que esse nome deténs,
Desse nome nada tens,
Pois à que pagar para chegar à grande cidade.

Devias chamar-te o teu nome primitivo:
Ponte Salazar;
Pois, para te atravessar,
É preciso pagar um significativo
Da não-liberdade,
Tal como no tempo do ditador.

É esta a tua liberdade, Portugal?
@@@

12 de março de 2014

Tabaco

O sol surgia a rodos de encontro às vidraças azuis do meu quarto, e lá fora, junto ao estreito, bem no fundo da rua, os primeiros barulhos da manhã ecoavam, como aliás todos os domingos assim o faziam. Hoje o dia está bonito, disse a Rosa do segundo esquerdo à Manuela da mercearia, e eu ouvia tudo meio ensonado, enrolado nos lençóis e lutando contra a realidade de ter de me levantar cedo a um domingo.

No entanto, e tendo a sabedoria popular mais a seu favor do que contra, disse para mim mesmo que o que tem de ser tem muita força. Levantei-me, tratei de mim e pus-me a andar.

No café do Roscas, a bica, a pedido, era sempre curta, e o pastel de nata sem açúcar e farto de canela, mas a bica vinha sempre cheia e o pastel sempre normal, pois nem o velho Roscas ouvia como em outros tempos, e nem vagar tinha para comprar canela. Tudo permanecia na mesma, até a pobre mosca, que jazida sobre o balcão, bem no cantinho onde quase ninguém a via, me dava pena, só por em tempos a ter visto voar.

Saí do café, puxei de um cigarro e pu-lo na boca. Olha que fumar faz mal rapaz, disse o Rogério, amigo do meu pai que por ali passava, Só me fará mal se o meu pai souber, respondi eu fitando-o com o olhar de quem espera cumplicidade. Sorri, e ao estalar do isqueiro a ponta rubra do cigarro ganhou fôlego.

Subi uma rua qualquer, o nome pouco importa, um lugar existe por si só e Lisboa conta-se pela cor, pelos becos e pelas ruelas, deitei o fumo fora e saboreei o gosto seco do tabaco, e ao virar da esquina, onde a calçada finda a favor do alcatrão, vi escrito numa parede branca em letras fartas e escuras a seguinte frase: «O Homem vive insuportavelmente, de forma mecânica e doentia, agarrado ao sentido e à lógica das "coisas"». Parei o tempo que precisei. Aquela frase cativou-me de alguma maneira.

Continuei a subir, e rua acima via perder-se na pequenez de um banco de madeira a silhueta enrugada de uma antiga varina, que sentada, junto à ombreira de uma porta, assim estava, sentada… junto à ombreira de uma porta! E eu, enquanto vivia de forma mecânica e doentia, agarrado ao sentido lógico das "coisas", ia fotografando a rua, o banco e a varina, e o cigarro fumava-o o vento.

Entrei no lavadouro, e ao ver tantas formas, tantas mãos e tantas rugas por tantos e tão estranhos cantos, senti-me tão leve, tão pequeno, tão ingénuo e tão inculto.

A mulher no lavadouro não parou para me ver entrar, e foi desconcertante a forma certeira e agressiva com que a via arrastar e atirar a roupa contra o tanque do lavadouro. Franzi a sobrancelha direita num gesto de total envolvência e entrega e fotografei, fotografei sem parar e podia até jurar que aquelas mãos falavam comigo. Quando se cansou, a roupa claro, porque os seus braços dariam para muito mais, a mulher parou, e num andar lento e determinado, de quem ainda sabe que é capaz, foi ao encontro de uma cadeira velha e sentou-se. Setenta e muitos, estava eu disposto a arriscar, talvez oitenta, quem sabe…

Onde vai buscar aquela força, aquela com que há pouco sanicou a roupa contra a pedra, perguntei eu com ar incrédulo e completamente rendido. Ao desgosto, respondeu, Ao desgosto que a vida nos oferece ao longo dos anos, e ao desprazer, principalmente ao desprazer que sinto, acrescentou secamente.

Parei o tempo que precisei. Aquela resposta cativou-me de alguma maneira. Fiquei a observá-la durante largos minutos e nem por isso ela voltou a olhar para mim. PÁS! De novo a roupa a sofrer. Saí. O ser humano sempre me cativou neste aspeto! O facto de se revelar a melhor e a mais cativante de todas as “coisas” e ao mesmo tempo a pior e a mais dececionante.

7 de março de 2014

Mundano

Desculpa mãe,
Cada suspiro intensifica a culpa minha,
Que por desvairado acto levou aos vícios.
Desculpa pai,
Por não poder seguir em vida teus distintos passos
Que, ontem, fizeram de ti a figura que hoje admiro.

Meu corpo é fraco e meu espírito frágil,
Deixa-se levar pelos pequenos prazeres.
Meu intelecto percebe os males dos meus actos
Mas minha alma não ouve o que este lhe diz.

Tem prazer em comer chocolate
Quando o corpo se sente grande,
Tem gosto em beber álcool
Quando o cérebro já está embriagado,
Tem desejo de um cigarro
Quando os pulmões se sentem débeis.

Eis que assim me desfalece o corpo,
Tão delicado desde nascença e danificado
Pelos males mundanos que meu espírito viciam,
Oferecendo prazer instantâneo.

3 de março de 2014

Avançar para a frente

Reza a lenda que foi o próprio Dom Afonso Henriques a cunhar a expressão quando um soldado algo vesgo lhe perguntou para que lado haveriam de avançar. "Para a frente, avancem para a frente" - disse, apontando em direcção ao Alentejo. E foi assim, avançando para a frente, que se foram os mouros, os espanhóis, os ingleses e os outros. O que ficou para trás foi algo que, devo confessar, acho fantástico. Acusem-me de saudosismo, patriotismo exacerbado ou de falta de contacto com a realidade. Não me interessa. Acho este país maravilhoso e cada vez tenho (eu e o mundo) mais provas disso. O que o torna tão bonito não são só as paisagens, a comida, o tempo, as cidades, as pessoas, a cultura, a história ou a pretensão para o fatalismo - da qual partilho - é a atmosfera. Portugal está envolvido numa atmosfera paradoxal, de amor-próprio e queda para a auto-destruição - melhor resumida por outra expressão tradicional (patrocinada pelos romanos), "não se governam nem se deixam governar". É esta a atitude que me faz ser português e que está cravejada na personalidade colectiva do país. Conseguimos deitar ao mar todos os sucessos que alcançámos, deixando apenas as suas memórias. Mas tudo bem, talvez seja esse o nosso maior sucesso. Ser uma espécie de incubadora disfuncional, capaz de criar a ideia, sustentá-la até que cresça e ultrapassar a pequenez do nosso território, dando-se ao mundo. Até posso estar errado, mas pelo menos é um lado positivo da coisa.

Quanto ao fatalismo. Ah, o fatalismo! Das nossas melhores qualidades. Não pela tendência de auto-mutilação mas por, apesar de sabermos que vai dar para o torto, e "avançarmos para a frente" gritando, de olhos fechados, "seja o que Deus quiser!". A coragem de enfrentar o desafio, o medo e os problemas, sempre com esperança de ver um dia melhor - apenas para o podermos estragar de novo. Não interessa, damos um pontapé nos maus agoiros, empurramos quem se mete à frente, esquecemos as regras gramaticais e lá vamos nós, navegando pelas tempestades. E assim continuaremos, presos a um barco de papel, com um leme de barro, navegado por homens de ferro num mar de espinhos para chegar à ilha dos amores.

O porquê de escrever isto agora? Porque hoje, mais do que nunca, me orgulho de ser português! Orgulho-me de ver a força de vontade nos olhos deste povo! Orgulho-me de ouvir palavras de ordem e de esperança nas ruas! De passear por este país e saber que se mantém o mesmo! De saber que melhores dias virão e que estarei cá para vê-los ao lado de todos os portugueses que se dignem a usar esse mote de Dom Afonso Henriques!

Bora, avancemos para a frente.