2 de abril de 2014

Introspeção ou a dualidade do tempo

As gotas deslizavam pela janela do pára-­brisas, como que a ver qual delas ganhava aquela corrida infrutífera e desprovida de qualquer prémio. Os limpa­ pára­-brisas trabalhavam sem cessar e, ainda assim, as gotas teimavam em escorrer vidro abaixo, como que a competir comigo. Nada verás para além de nós. Boa sorte a descalçar esta bota. 

À medida que avançava, perdia-­me. Deixei de ver a estrada de dois sentidos que estava à minha frente. Deixei de me preocupar com o facto de esta parecer estreita para dois carros ligeiros. Estreita demais. Deixei de ver as gotas que competiam entre si para saber qual delas chegava primeiro a um local que deveria estar predestinado e estabelecido entre si como meta. Fixei o olhar no relógio digital que marcava já as vinte e duas horas e trinta e quatro minutos e insistia em relembrar­-me constantemente de que estava atrasada para, também eu, naquele dia chuvoso e pouco apelativo, chegar à minha meta.

Dei por mim perdida, mas não no caminho que tomava. Perdida algures nas camadas intrínsecas das memórias. Perdida no tempo e na sua relatividade. Como é possível que a minha primeira memória date de quando tinha pouco mais de três anos e, no entanto, não me lembre de momentos mais tardios e que deveriam estar mais presentes nas minhas lembranças? Deveriam, sim, se todos os momentos valessem o mesmo, temporalmente falando, e se o tempo - assim como as memórias - fizesse uma viagem retilínea.

E fará? Será que sim, será que não?

Neste momento, a estrada que percorro é bastante ziguezagueante, cheia de curvas e contra­curvas, não sendo possível prever como será o troço seguinte. Um pouco como a minha perceção da passagem do tempo. Ora passa depressa, ora abranda, como se estivesse perante o sinal amarelo, prestes a cair para o vermelho. Os relógios parecem marcar os segundos de forma maquinal; contudo, o tempo parece ele próprio possuir reflexão sobre si mesmo. Parece perceber que às vezes tem de passar mais depressa, outras vezes mais devagar. Todavia, o timing não é o ideal, pois gosta de viajar dessincronizado. Gosta de quebrar regras, quanta audácia transporta!

Recuperada da minha introspeção, notei agora que tinha também a companhia de uma bela trovoada para não me sentir abandonada no meu trajeto. Pedimos que aqueles que vêm ao volante tenham especial atenção, pois a tempestade desta noite avizinha­-se feia. São esperadas fortes rajadas de vento que podem atingir os cento e vinte quilómetros por hora. Também a chuva e a trovoada estarão presentes nesta noite fria. Mas fiquem com a nossa rádio, que ficarão por certo em boa companhia. 

Merda! Agora teria de me despachar porque ainda estava longe do meu destino. Como sempre, tinha abrandado inconscientemente, pois o meu cérebro preza muito o invólucro que o sustém e faz os possíveis para o proteger quando está em piloto automático.

Olhei pelo retrovisor. Não vinha nenhum carro atrás. Cobardes, com medo de uma tempestadezinha. Estava, portanto, sozinha. Quer dizer, não tão sozinha assim. Inclinei ligeiramente o espelho para baixo e vi­-o. No banco traseiro, deitado, como se não houvesse mundo para além daquele profundo sono em que estava imerso, estava Huno, o meu fiel companheiro de quatro patas. Dormia e suspirava despreocupadamente, alheio ao temporal que persistia lá fora. Já dizia o outro, que a inconsciência nos causa alegria e pensar apenas nos conduz à dor. Será? O Huno parecia estar sempre a sorrir, ainda que a dormir, por isso deveria ser verdade. Nesse momento, o Huno acorda, levanta-se e põe a pata no meu banco como que a fazer notar a sua presença. Com a mão direita, afaguei-lhe o pescoço e recebi uma lambidela de agradecimento.

Acelerei na curva seguinte e senti o carro a fugir ligeiramente. Inspirei, fechei os olhos por um segundo, encadeada com as luzes de outro veículo que vinha no sentido contrário ao meu, e meti novamente prego a fundo, porque o tempo urge e não espera por ninguém.

Sem comentários: