26 de fevereiro de 2014

A bagagem que nos acompanha ao longo da vida

É-nos instruído logo desde a infância o “dever” de frequentar a escola. Porque lá aprenderemos a ler, escrever, realizar operações básicas de cálculo ou a história do país e do mundo em que vivemos. Para aligeirarem essa tarefa, que por si só pode não parecer muito apelativa a uma criança de 6 anos, convencem-nos de que lá encontraremos amigos e pessoas mais velhas e, dizem eles, mais sábias, que nos ajudarão a alcançar os nossos objetivos.

Aquilo que ninguém nos diz é se a escola potencia realmente os desígnios da nossa vocação, se é lá que conseguimos alcançar os nossos verdadeiros objetivos, como nos tentam convencer. Todo o aglomerado de conhecimento com que somos bombardeados é relativamente importante, mas quando frequentamos pela primeira vez o ensino eles não nos fazem nenhuma “triagem”. Não recolhem informações pessoais sobre aquilo que gostamos de fazer ou em que somos realmente bons. Ninguém nos diz: Agora entrarás neste estabelecimento onde te ensinaremos algo adequado à tua personalidade. (Nem poderia ser assim tão simples e linear, verdade seja dita. Ainda somos uns bons milhares a enveredar pela via do ensino. Mas poderia ser diferente. E é isso que marca a evolução e a inovação: a diferença.)

Sir Ken Robinson, numa conferência TED, defende mesmo que as escolas, como as conhecemos, podem “matar a nossa criatividade”. Todos nós já sentimos que, na escola, não somos verdadeiramente bons; não somos génios da matemática nem particularmente bons a redigir textos ou a memorizar todos os acontecimentos e ideais que marcaram a Guerra Fria. Portanto, depreendemos que não somos especialmente dotados ou talentosos. E é aqui que Sir Ken Robinson afirma que todos somos “bons”, apenas podemos não o ser naqueles parâmetros que nos querem impor. Se calhar somos melhores “dançarinos, músicos” ou qualquer outro tipo de artistas. Se calhar a nossa praia é o desporto e não tanto os livros ou as calculadoras.

Remontando à sua etimologia, a palavra deriva do grego scholē (σχολή), que significava originalmente “lazer” ou “aquele em que o lazer é empregado”. Assim sendo, as escolas deveriam conseguir captar o melhor que há em cada criança, em cada um de nós, e ajudar-nos a triunfar naquilo em que podemos brilhar; a ser um artista na nossa própria galeria de arte. Deveriam ainda ser capazes de conciliar as matérias mais valorizadas com lições de literatura, cinema, música, dança, artes plásticas ou até mesmo desporto. Lições essas que contribuíssem para formar pessoas mais cultas e descobrir em que área reside realmente a sua vocação. Querem ler? Nós damos-vos e aconselhamos-vos livros. Querem descobrir música clássica? Apresentamos-vos Beethoven. Querem exprimir-se por meio da escultura? Tomem um pouco de barro. Moldem os vossos pensamentos, moldem as vossas mentes.

E ao ler todo este conjunto de letras, que formarão palavras, e, eventualmente, frases com sentido para a nossa cabeça, não fiquem com a impressão de que desvalorizo tudo o que me ensinaram acerca de ler, escrever ou contar, não! Apenas defendo que deveria ser dado algum crédito às matérias que são mais frequentemente postas de parte. Para que “nós” que aqui surgimos (enquanto crianças) não nos transformemos n’“eles”, aqueles que nos tentam persuadir de que devemos forçosamente frequentar a escola e uma só via de ensino convencional. Para que ao longo da nossa vida consigamos apreciar o lazer que a escola, digna desse nome, nos proporcionou para o nosso crescimento enquanto pessoas.

24 de fevereiro de 2014

A bicicleta

Fui atropelada pela primeira vez quando tinha menos de cinco anos. Assumo que tivesse menos de cinco anos porque foi no Huambo. Saí do Huambo quando tinha cerca de cinco anos porque depois de um ano em Luanda entrei pela primeira vez no primeiro ano da escola elementar. Deduzo, então, que a data de nascimento da minha curiosidade eterna tenha sido nesse dia, ou antes, talvez a minha mãe me saiba dizer com maior precisão. Mas nunca faço perguntas complicadas à minha mãe. Provavelmente, ao nascer, a minha mãe fez um pacto comigo: que me amaria incondicionalmente em troca de paz de espírito e ausência de perguntas complicadas de responder. Perguntas como o relato detalhado da morte do meu pai. Ainda ninguém me soube explicar como e quando ele morreu. Enquanto crescia fui ouvindo as mais variadas estórias. Numa delas culpam uma das várias minas espalhadas pelo Huambo. Noutra culpam um padrinho ou tio de um tio meu – ignoro sempre os graus de parentescos na minha família, é uma família grande.

Estava a caminho da casa dos meus avôs paternos (ou maternos? Nunca sei.). Estava sozinha, porque é assim que o Huambo funciona. Ou, pelo menos, era assim que S. Pedro funcionava. Em S. Pedro as crianças tinham liberdade infinita nas ruas porque todos tomavam conta de todos. Em plena guerra civil, eu tinha mais liberdade nas ruas do Huambo do que na paz das ruas de Luanda. A caminho da casa dos meus avôs vi um homem montado numa bicicleta. A minha memória falha em dizer-me se aquela era a primeira bicicleta que eu via em S. Pedro. Se fosse a primeira, justificaria o facto de me ter lançado para o meio da estrada, movida pela curiosidade do que aconteceria a seguir. Lembro-me de ter pensado o que irá acontecer se eu me puser no meio da estrada? Os momentos seguintes foram totalmente apagados da minha memória. Salto da estrada para a delegacia, onde um dos meus muitos tios avôs trabalhava como policial. Eu disse-lhe que eu estava no passeio e ele saltou a estrada para o passeio, eu comecei a fugir e ele foi atrás de mim com a bicicleta. Disse essas mentiras com todos os dentinhos que uma criança endiabrada tem. Depois disso lembro-me apenas de que brincava com pintainhos - fascinava-me a sua penugem amarela -, que o meu avô paterno faleceu e tive de usar uma pulseira branca durante semanas e prometer que não iria chorar, e que um dia tivemos de abandonar a nossa casa, a família do Huambo e partir para Luanda para fugir de uma guerra que eu só via na televisão por ser muito criança e ter muita liberdade para sequer notar o perigo.

Voltei a ver uma bicicleta em Luanda, algures antes dos dez anos.