12 de março de 2014

Tabaco

O sol surgia a rodos de encontro às vidraças azuis do meu quarto, e lá fora, junto ao estreito, bem no fundo da rua, os primeiros barulhos da manhã ecoavam, como aliás todos os domingos assim o faziam. Hoje o dia está bonito, disse a Rosa do segundo esquerdo à Manuela da mercearia, e eu ouvia tudo meio ensonado, enrolado nos lençóis e lutando contra a realidade de ter de me levantar cedo a um domingo.

No entanto, e tendo a sabedoria popular mais a seu favor do que contra, disse para mim mesmo que o que tem de ser tem muita força. Levantei-me, tratei de mim e pus-me a andar.

No café do Roscas, a bica, a pedido, era sempre curta, e o pastel de nata sem açúcar e farto de canela, mas a bica vinha sempre cheia e o pastel sempre normal, pois nem o velho Roscas ouvia como em outros tempos, e nem vagar tinha para comprar canela. Tudo permanecia na mesma, até a pobre mosca, que jazida sobre o balcão, bem no cantinho onde quase ninguém a via, me dava pena, só por em tempos a ter visto voar.

Saí do café, puxei de um cigarro e pu-lo na boca. Olha que fumar faz mal rapaz, disse o Rogério, amigo do meu pai que por ali passava, Só me fará mal se o meu pai souber, respondi eu fitando-o com o olhar de quem espera cumplicidade. Sorri, e ao estalar do isqueiro a ponta rubra do cigarro ganhou fôlego.

Subi uma rua qualquer, o nome pouco importa, um lugar existe por si só e Lisboa conta-se pela cor, pelos becos e pelas ruelas, deitei o fumo fora e saboreei o gosto seco do tabaco, e ao virar da esquina, onde a calçada finda a favor do alcatrão, vi escrito numa parede branca em letras fartas e escuras a seguinte frase: «O Homem vive insuportavelmente, de forma mecânica e doentia, agarrado ao sentido e à lógica das "coisas"». Parei o tempo que precisei. Aquela frase cativou-me de alguma maneira.

Continuei a subir, e rua acima via perder-se na pequenez de um banco de madeira a silhueta enrugada de uma antiga varina, que sentada, junto à ombreira de uma porta, assim estava, sentada… junto à ombreira de uma porta! E eu, enquanto vivia de forma mecânica e doentia, agarrado ao sentido lógico das "coisas", ia fotografando a rua, o banco e a varina, e o cigarro fumava-o o vento.

Entrei no lavadouro, e ao ver tantas formas, tantas mãos e tantas rugas por tantos e tão estranhos cantos, senti-me tão leve, tão pequeno, tão ingénuo e tão inculto.

A mulher no lavadouro não parou para me ver entrar, e foi desconcertante a forma certeira e agressiva com que a via arrastar e atirar a roupa contra o tanque do lavadouro. Franzi a sobrancelha direita num gesto de total envolvência e entrega e fotografei, fotografei sem parar e podia até jurar que aquelas mãos falavam comigo. Quando se cansou, a roupa claro, porque os seus braços dariam para muito mais, a mulher parou, e num andar lento e determinado, de quem ainda sabe que é capaz, foi ao encontro de uma cadeira velha e sentou-se. Setenta e muitos, estava eu disposto a arriscar, talvez oitenta, quem sabe…

Onde vai buscar aquela força, aquela com que há pouco sanicou a roupa contra a pedra, perguntei eu com ar incrédulo e completamente rendido. Ao desgosto, respondeu, Ao desgosto que a vida nos oferece ao longo dos anos, e ao desprazer, principalmente ao desprazer que sinto, acrescentou secamente.

Parei o tempo que precisei. Aquela resposta cativou-me de alguma maneira. Fiquei a observá-la durante largos minutos e nem por isso ela voltou a olhar para mim. PÁS! De novo a roupa a sofrer. Saí. O ser humano sempre me cativou neste aspeto! O facto de se revelar a melhor e a mais cativante de todas as “coisas” e ao mesmo tempo a pior e a mais dececionante.

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