Ele come gelados no inverno porque a vida é demasiado curta para moldarmos os nossos gostos segundo os gostos do planeta.
- Quero ver o mundo a arder!
Diz isso enquanto esbate sobre a tela camadas grossas de tinta castanha.
- O que pintas?
- Um esqueleto.
- Com esse pincel? Não seria melhor um mais fino?
- Não sou Caravaggio!
Sentado numa cadeira de madeira, de frente para a janela, para vislumbrar o negro da noite, pincela ferozmente. Pincela na tela e na roupa, na roupa que outrora fora imaculadamente branca. Usa sempre roupas brancas, de linho, para pintar.
- Pinto de branco, em noites negras, para misturar o luto humano com o luto do céu.
- Mas o branco não é a cor do luto.
- E quem o diz? Os padres reprimidos e as noivas virgens?
Tem um gira-discos Dallas Classic, especialmente comprado para o único disco de vinil que tem. Está no chão, entre a secretária e o quadro de uma mulher de vestido vermelho esfarrapado que passeia descalça pelas ruas de Paris. Toca Gato Barbieri, sempre Gato Barbieri. Toca desde o primeiro dia em que entrei neste quarto. Toca até o som penetrar no cérebro e criar pedaços finos de vidro que vão cortando o tecido e provocando dores de cabeça tortuosas. Ele parece ser imune a toda esta tortura.
Levanto-me da cama e caminho a seu encontro.
- O que pintas?
- Um cigarro.
- No esqueleto?
- Sim.
- Faltam-lhe pulmões. Como é que fuma sem pulmões?
- Como é que uma sombra fala nos livros de Murakami e tu não te interrogas?
- Mas isso é literatura.
- E isto é pintura!
As paredes negras do quarto contrastam com os quadros luminosos. Todos os quadros que pintou até então estão preenchidos por uma palete de cores leves. Todos, excepto este que ele está a pintar agora. Talvez o fundo negro sirva para contrastar com o esqueleto.
- Não achas que o cigarro merecia uma chama mais acentuada? E essas costelas não estão um pouco irreais, assim afastadas do resto?
- Talvez.
Pinta a chama quase impercetível do cigarro. Pousa os pincéis. Levanta-se, despe a camisa, dobra-a cuidadosamente e coloca-a em cima da cama. Desaperta o cinto das calças de linho, tira-as, dobra-as e coloca-as em cima da camisa. Dirige-se para a janela, senta-se no parapeito. Com o negro do céu, o verde que colora os seus olhos acentua-se.
- O que queres fazer?
- Quero ver o mundo a arder.
Atira-se para fora da janela. Corro para a janela, vejo-o cair e grito:
- Olha que desta vez não será só a orelha, magoarás o corpo todo!
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