24 de março de 2014

Ela continua lá...

Eu limito-me a escrever sobre as coisas. Procuro alguma forma de me abstrair desta maldita sociedade que todos os dias me consome e rouba tudo aquilo que possa ser considerado humano, convertendo-me num autómato; numa máquina; em algo desprovido de sentimentos e emoções. O cancro da sociedade humana.

Mas ela continua lá…

É cansativo, no mínimo. Quando se tenta empenhar o nosso esforço sobre a oficina universal e sentimos o peso do nosso passado e de outros pensamentos. Haha! O trabalho fica comprometido. Rio-me pela insignificância do que acabo de me aperceber. Uma resistência inútil. Uma tentativa fugaz de alcançar aquilo que denominamos “civil” ou “humano”. É triste, no fundo. Como tal, levanto-me da secretária e tomo para outros lados.

Mas ela continua lá…

Preparo o meu jantar e tento alimentar a básica necessidade humana de “comer”. Pena que a mente se desvie para outros lados. Um “comer” diferente seria mais apropriado… Desde… Desde…

Não, não irei pensar nisso. Será decerto a minha ruína, como a de muitos outros antes de mim. Quando se lembram do calor, da sensação inigualável do toque de carmesim e da respiração ofegante. Da prenda divina a que todos os seres vivos tiveram acesso. Do trocar de almas e da mistura de  sonhos, pesadelos e compreensão da nossa barbárie. Uma selvageria prima de tempos outros. Tempos infinitos desde o processo da criação. Que foi? Acham-me louco por desejar assim tanto isso? Será que as pessoas se esqueceram do básico que as coisas são? Será que…

- Ainda aqui…

Não! Deixa-me! Eu não sou isso. Recuso-me a ser escravo desse pequeno sonho, inegável desejo.
Retiro-me frustrado da cozinha. Talvez música? Sim, música. Acalma-me. Chopin? Ou estarei mais para Bach hoje? Talvez Debussy.

Dirijo-me para o piano e toco. Toco… Viajo por entre o marfim e o ébano. Na procura de uma qualquer estrada musical, para além da escuridão do que me persegue. As notas passam por mim, acompanhadas por um mundo neutro e infinito. Um mundo que não é necessariamente a cores, mas também não se encontra desprovido delas. Vejo infâncias…

Observo passados e aberturas que dão entrada para tantas possibilidades…

É tão giro como a primeira música é sempre uma das mais especiais. Arabesque nº1.

- Lamento, mas contínuo cá. Ainda a tentar resistir-me?

Silêncio! Ahhhh! Como eu desprezo a obsessão que me fazes sentir. A forma como eu poderia pôr um fim a tudo…

Bato no piano, formando um acorde desconhecido pela mente de uma qualquer pessoa sã. O acorde é gritante. A mão procura… Procura algo… A mente ajuda…

- Porque te negas?

Não… Eu não posso. Será nojento. Apenas me vai amarrar mais.

- Shiu… Relaxa!

Ordem suprema do abrir da fenda cerebral! Toda a razão perdida. Apenas instinto. Instinto básico. Procura de sensações. Procura do gosto e de memórias. Memórias ativam.

O suor… O odor. Aquele regresso ao mais puro dos edens que nos foram concedidos. Sim! É isso. O maravilhoso toque que apenas… apenas…

- Eu posso permitir…

Sim! Tu!

- Rejeitas?

Não! Nunca! Não posso. Preciso de mais e mais e mais… Uma e outra vez. As energias não se esgotam. Rejeitar? Nunca!

- Então… Submete-te!

Agora e para todo o sempre! Liberta-me! Liberta-me!

LIBERTA-ME!



Silêncio…

O instinto vai-se…

A culpa assume forma. Uma forma não muito agradável. Rapidamente desaparece. Assim como a estranheza aceitadora.

A vida continua. Será apenas mais um. Um de muitos…

Tenho de trabalhar…

Sim, trabalhar.



Mas ela continua lá…

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