5 de maio de 2014

Vergonha

Os sonhos, de manhã, são cantos de sereias. Iludem-me, seduzem-me para a sua direção e incitam-me a renegar a realidade. Mas não são sereias dos mares, são sereias num quarto escuro separado da claridade da realidade por uma porta azul. Chamam-me para o desconhecido, chamam-me para o atraso aos meus compromissos. Chamam-me para mais horas de sono e sonhos. As sereias são então partes do meu corpo, do meu corpo cansado. O meu corpo cansado que anseia por algum tempo de repouso. Mas esse mesmo corpo atraiçoa-me quando me rendo aos cânticos.

Sinto um fino fio de fluído a percorrer entre a pele das minhas pernas. Lentamente, os movimentos dos meus músculos vão se pronunciando, mostrando-se indiscretos e descoordenados. Ora dói-me o útero, ora doem-me os músculos da vagina. É um conjunto de movimentos primitivos e incertos.

Se esta fosse uma manhã da minha adolescência, levantar-me-ia o mais depressa possível da cama, para colocar, entre as minhas pernas, aquilo que é um dos vários atentados do Homem para esconder a sua vergonha. Colocaria um penso higiénico para me diferenciar das outras fêmeas do reino animal. Para lhes mostrar que a diferença entre o animal racional e o animal irracional reside apenas no facto de o racional saber esconder muito bem aquilo que o aproxima dos irracionais. Dizem-me que o que nos difere deles reside na nossa superioridade como a espécie escolhida pelo criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, que há já muitos milénios promete descer à Terra e fazer justiça para todos os homens bons, embora eu só o tenha visto nas maçãs divinas que como com regularidade preocupante. Mas aí, tanto a aparição como a justiça terrena são feitas só para mim. Pergunto-me se não serei eu a eleita. Pergunto-me se todas aquelas maçãs Fuji não são o alimento feito pelo Senhor, especialmente para mim, a eleita.

As gotas de sangue menstrual continuam a percorrerem a minha vagina. Continuo deitada, com uma almofada debaixo das minhas ancas, porque é sábado e interessa-me mais o conforto de uma cama que a vergonha transmitida por ancestrais.

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