16 de maio de 2014

Bandido

Acorda todos os dias com a Nona. Permanece deitado na cama e tira da mesa de cabeceira um dos jornais no amontoado que lá tem. Lê uma data de páginas e volta a pousá-lo em cima do monte. Olha fixamente para o teto, enquanto ganha coragem para remover as mantas e lançar-se ao ambiente frio do quarto. Quando se cansa do coro, a força fingida da mente retira-o das mantas. Calça as pantufas brancas. Sai do quarto para o quarto de banho, onde escova os dentes minuciosamente, para depois contemplar a sua brancura.

Em cima da mesa da cozinha tem outro monte de jornais. Dirigi-se para lá, tira o café do armário e põe-no no filtro. Muito café e pouca água. Deseja-o amargo, porque café só é café se for amargo. Come sempre duas torradas, barradas com doce de morango, para acompanhar o café. Senta-se à mesa e degusta a refeição. Olha a montanha de jornais, que apelidou de Bandido, de relance. O Bandido do quarto é um acumular de notícias da atualidade. O Bandido da sala é um acumular de tudo que difere de notícia. Guarda jornais nos Bandidos para um dia mais tarde os ler. Os da atualidade não interessam em que altura são lidos. O tempo, na sua mente, não é linear. Como um relógio, volta várias vezes à mesma coordenada. As notícias de ontem podem, então, ser as notícias de hoje.

Hoje é sábado. Não tem de ir ao escritório, mas acorda mais cedo. Acaba de ler uma crónica de um jornal do Bandido da sala quando o relógio começa a gritar sons agudos. Está na hora de sair. Calça as botas e veste um casaco. Pega na caixa com o maço de cigarros e nas chaves, põe-nos no bolso. Sai para a rua com a roupa de dormir. «Não interessa, o Sol ainda não acordou!». Ao fechar a porta do prédio é confrontado com uma chuva que não é chuva, mas sim gelo, e gelo que não é neve. Chove ferozmente. Se voltar para trás agora, é pouco provável que tenha os jornais do dia de hoje. «Que se lixe!». Desce a rua. A rua onde mora é bastante inclinada. Se alguma vez tiver de fugir, a sua fisionomia atraiçoá-lo-ia, a gordura que tem na barriga é provável que também a tenha nas veias. Continua a descer. Para e encosta-se a um poste perto da papelaria da sua rua. Fumaria quantos cigarros fossem necessários até chegar a carrinha que entrega os jornais, mas está a chover. Nem a chama nem o cigarro acenderiam.

Uma carrinha vermelha aproxima-se, para em frente à papelaria. Dela sai um homem. Emília, a rapariguinha que trabalha na papelaria, abre a porta, o homem aproxima-se da porta e Emília inicia uma conversa inaudível com o homem. Aproxima-se da parte traseira carrinha, tira um dos conjuntos de jornais e põe debaixo do casaco. Olha para Emília. Ela corresponde ao olhar, como se fosse cúmplice platónica dele. Atravessa para o outro lado da rua, onde está o poste. Sobe a rua. A chuva cai, mas já não é gelo, nem gelo que não é neve, é água, apenas. Enquanto sobe, sente no cansaço a gordura das veias «Eu deveria fazer algum desporto.». Chega finalmente ao seu prédio. Subiria as escadas, mas os sábados de manhã são para o elevador. Em casa, põe os jornais em cima dos Bandidos, tira um jornal de edições passadas do Bandido da sala para ler na banheira, enquanto ouve a missa de Beethoven, para que no dia do juízo final o Senhor se lembre que os pecados eram seguidos por composições divinas.

Sem comentários: