24 de fevereiro de 2014

A bicicleta

Fui atropelada pela primeira vez quando tinha menos de cinco anos. Assumo que tivesse menos de cinco anos porque foi no Huambo. Saí do Huambo quando tinha cerca de cinco anos porque depois de um ano em Luanda entrei pela primeira vez no primeiro ano da escola elementar. Deduzo, então, que a data de nascimento da minha curiosidade eterna tenha sido nesse dia, ou antes, talvez a minha mãe me saiba dizer com maior precisão. Mas nunca faço perguntas complicadas à minha mãe. Provavelmente, ao nascer, a minha mãe fez um pacto comigo: que me amaria incondicionalmente em troca de paz de espírito e ausência de perguntas complicadas de responder. Perguntas como o relato detalhado da morte do meu pai. Ainda ninguém me soube explicar como e quando ele morreu. Enquanto crescia fui ouvindo as mais variadas estórias. Numa delas culpam uma das várias minas espalhadas pelo Huambo. Noutra culpam um padrinho ou tio de um tio meu – ignoro sempre os graus de parentescos na minha família, é uma família grande.

Estava a caminho da casa dos meus avôs paternos (ou maternos? Nunca sei.). Estava sozinha, porque é assim que o Huambo funciona. Ou, pelo menos, era assim que S. Pedro funcionava. Em S. Pedro as crianças tinham liberdade infinita nas ruas porque todos tomavam conta de todos. Em plena guerra civil, eu tinha mais liberdade nas ruas do Huambo do que na paz das ruas de Luanda. A caminho da casa dos meus avôs vi um homem montado numa bicicleta. A minha memória falha em dizer-me se aquela era a primeira bicicleta que eu via em S. Pedro. Se fosse a primeira, justificaria o facto de me ter lançado para o meio da estrada, movida pela curiosidade do que aconteceria a seguir. Lembro-me de ter pensado o que irá acontecer se eu me puser no meio da estrada? Os momentos seguintes foram totalmente apagados da minha memória. Salto da estrada para a delegacia, onde um dos meus muitos tios avôs trabalhava como policial. Eu disse-lhe que eu estava no passeio e ele saltou a estrada para o passeio, eu comecei a fugir e ele foi atrás de mim com a bicicleta. Disse essas mentiras com todos os dentinhos que uma criança endiabrada tem. Depois disso lembro-me apenas de que brincava com pintainhos - fascinava-me a sua penugem amarela -, que o meu avô paterno faleceu e tive de usar uma pulseira branca durante semanas e prometer que não iria chorar, e que um dia tivemos de abandonar a nossa casa, a família do Huambo e partir para Luanda para fugir de uma guerra que eu só via na televisão por ser muito criança e ter muita liberdade para sequer notar o perigo.

Voltei a ver uma bicicleta em Luanda, algures antes dos dez anos.

Sem comentários: